Um cachorro terrier, e uma família!
A arte de Correr na Chuva – título original The Art of Racing in the Rain – foi escrito pelo autor americano Garth Stein , lançado em 2008, e traduzido em 35 línguas, com vendas que superam os quatro milhões de exemplares, conferindo ao livro posição na listagem dos mais vendidos do New York Times por três anos.
O autor, fã declarado de Ayrton Senna, deixa transbordar no título e nas páginas sua admiração pelo corredor e pelas lições do corredor, além de sua paixão pessoal pelo automobilismo através do personagem narrador, o terrier Enzo. O dono de Enzo, Denny, leva consigo característica do autor, Stein, no que se refere ao conhecimento sobre carros e pilotagem de alto desempenho, para a qual o autor até mesmo possui licença na vida real.
Ai você logo pensa: “poxa vida, mais uma história do tipo Marley e eu”. E você tem dose de razão neste pensamento já que, impressionantemente, obras nesse sentido se multiplicaram após o imenso sucesso do “pior cão do mundo”. Mas você se engana completamente, e não que eu tenha algo contra Marley e eu, a não ser o fato de que não tenho coragem de ler o livro ou ver o filme novamente, pois chorei e choraria outra vez litros com a inevitável partida dessa vida, tema sempre tão complexo, controverso e fascinante, mas que não é o tema por aqui (ufa!).
Mas as coincidências param por ai, Enzo não é nem de longe um cão atrapalhado e arteiro, mas na verdade um cão com alma humana. Assiste Discovery Channel e de lá, através de um documentário sobre cães da Mongólia – que de fato existe sob o título State of Dog – veio sua maior e melhor informação, a de que cães na próxima encarnação voltam como homens, mas só aqueles que estão preparados, e ele, claro, sente-se preparado. E com essa crença passa a ser um atento observador da vida e das relações humanas.
O contexto da história trata da visão de Enzo acerca da vida de seu dono Denny – piloto apaixonado por automobilismo, e a busca por seu sonho –, a dramática perda da esposa Eve, e a luta judicial e moral para ficar com a pequena Zoe, filha do casal. Tudo sob o olhar espectador de Enzo, que intercala sua observação com a narração de si mesmo e sua preparação para ser homem, de seu nascimento à velhice.
Interessante notar que há passagens interessantes, que embora aparentemente tratem da visão de um cão, com um olhar mais atento é possível perceber que na verdade o que se pretende é relatar as mudanças no cotidiano familiar. É assim em relação ao namoro e casamento de Denny e Eve, quando esta se muda para a casa dos “meninos” antes solteiros e passa a alterar o cenário e os móveis; ou no nascimento de Zoe que possui toda a atenção e cuidados que Enzo gostaria, toma banho todos os dias, recebe educação, afinal ele queria ser um humano.
Em outra passagem o destaque se refere à presença do selvagem e humano que todos possuem, o que se materializa em Enzo na ocasião da morte de Eve, quando num rompante ele corre pelo campo, persegue e mata um esquilo, liberando a selvageria pela dor da perda que sentia, ele não queria mais ser humano e sentir o sofrimento, queria voltar a ser somente um animal, ele conclui “Fiz isso por Eve”.
Enzo narra seu aprendizado naquilo que lhe foi possível presenciar, já que como cão não lhe era permitido estar em todos os acontecimentos, e ainda como se sente em relação a sua velhice e iminente partida, que encara com um misto de medo, saudade e ansiedade, afinal o documentário dos cães da Mongólia já haviam lhe contado não? E ele não via a hora de possuir dedos, dizer palavras entendíveis e cruzar na rua com Denny para dizer-lhe “Enzo mandou lembranças”.
Mas eu resumiria a grande lição do livro em uma única frase: “seu carro vai pra onde vão seus olhos”, desejando destacar que o que você deseja está a sua frente e na sua mente e que o limite físico que nos impomos encontra superação também em nós mesmos, em nossa determinação . Você é o responsável pelo seu destino, “o piloto comum desiste. Os grandes pilotos contornam o problema”, há um propósito de vida, há uma força intrínseca em cada um de nós.
Sabe, todos os dias cruzamos na rua com dezenas de pessoas, e eu tenho o estranho hábito de pensar “qual será a história dela”, pois sempre há uma história, uma luta, uma lição, e acredito que esse seja a mensagem de Enzo, pode parecer clichê, repetitivo, mas não o é. Algumas redundâncias são necessárias, e o livro o faz com toda a criatividade, acredite.
“Sei algumas coisas sobre correr na chuva. Sei que tem a ver com equilíbrio. Tem a ver com antevisão e paciência”, e lá se foram minhas palavras escorrendo como a chuva.
Quando percebo já fiz um longo texto, que não diz nem metade do que eu gostaria, mas certamente disse o essencial. No mais, espero que Enzo tenha razão e que cães se tornem humanos na próxima vida conservando consigo a fidelidade, a honestidade e o amor desinteressado que lhes são tão característicos, talvez seja essa uma boa solução ao mundo em que vivemos.
Enfim, deixaria como mensagem a seguinte conclusão: pilote seu corpo, controle suas mãos e conduza seus olhos para a direção daquilo que almeja, permita que parte do mundo seja reflexo seu e não somente que você reflita o mundo, corra na chuva, contorne os obstáculo e se fortaleça para um grande destino.